A questão de saber se é um objetivo realista no nosso país surge frequentemente, e acredito que merece uma análise mais aprofundada, especialmente no que diz respeito aos nossos níveis salariais.
Desafios Salariais e Realismo do FIRE
Com base nas informações partilhadas neste grupo e nas nossas conversas, quero reiterar que, apesar dos desafios salariais que muitos enfrentamos em Portugal, o FIRE continua a ser um objetivo perfeitamente realista para quem está disposto a planear e a dedicar-se a ele.
É inegável que os ordenados médios em Portugal podem ser inferiores aos de outros países da Europa ou da América do Norte. Esta é uma realidade que pode, naturalmente, influenciar o tempo que levamos a acumular o capital necessário para atingir a independência financeira. No entanto, é crucial perceber que o FIRE não é estritamente sobre quanto ganhamos, mas sim sobre a diferença entre o que ganhamos e o que gastamos, e como investimos essa diferença de forma inteligente.
O Poder da Poupança e dos Juros Compostos
Uma taxa de poupança elevada, mesmo com um rendimento modesto, pode gerar um capital significativo ao longo do tempo, especialmente quando aliado ao poder dos juros compostos através de investimentos consistentes. Este grupo é uma prova viva de que existem muitas pessoas em Portugal a adotar esta mentalidade e a progredir nas suas jornadas FIRE, partilhando estratégias, dúvidas e sucessos.
Equívocos Comuns sobre o FIRE
No entanto, quando se fala com alguém que descobriu o FIRE à pouco tempo, surge quase sempre um ponto muito importante que merece destaque e que pode influenciar a perceção de realismo do FIRE em Portugal. Refiro-me a uma ideia errada que por vezes emerge, em que algumas pessoas parecem acreditar que o objetivo do FIRE é viver com um rendimento mensal superior ao que auferem atualmente a trabalhar.
Há algum tempo um membro levantou uma questão pertinente sobre a lógica de alguém a poupar uma quantia modesta com um ordenado limitado e esperar reformar-se com um rendimento mensal significativamente mais alto.
Os argumentos apresentados nesse comentário foram bastante diretos e acho que merecem ser clarificados: Questionava-se a premissa de que alguém com uma poupança mensal limitada (ganhava 800€ e conseguia poupar €300, o que já é muito bom) conseguiria manter essa poupança inalterada durante 10 a 15 anos sem qualquer aumento salarial ou progressão profissional, e depois reformar-se com um rendimento mensal substancialmente maior (€1000 no exemplo). Esta perspetiva ignora a probabilidade de aumentos salariais ao longo do tempo e a possibilidade de procurar melhores oportunidades de emprego, que são elementos importantes na jornada FIRE de muitas pessoas.
Princípios Fundamentais do FIRE
A filosofia do FIRE assenta em viver com um valor inferior ao rendimento atual e sentir-se confortável com esse nível de despesas. O objetivo é que, ao atingir a independência financeira, os rendimentos dos investimentos consigam cobrir essas mesmas despesas (ou um valor semelhante, ajustado pela inflação).
A ideia central do FIRE não é, portanto, esperar uma reforma antecipada com um padrão de vida significativamente mais elevado do que o atual. Em vez disso, trata-se de construir um património que gere rendimentos passivos suficientes para cobrir as nossas despesas atuais (ou um nível de despesas conscientemente definido e sustentável).
É claro que, ao longo do tempo, as nossas despesas podem mudar. Podemos ter filhos, mudar de casa, ou desenvolver novos hobbies. No entanto, o princípio fundamental do FIRE permanece o mesmo: atingir um ponto em que não precisamos mais de trocar o nosso tempo por dinheiro para cobrir as nossas necessidades e desejos.
Estratégias para Acelerar o FIRE em Portugal
Em relação aos salários em Portugal, é verdade que podem influenciar o ritmo a que atingimos esse ponto. No entanto, focar-se em aumentar a taxa de poupança através da redução de despesas desnecessárias e da otimização dos nossos rendimentos (procurando melhores oportunidades, desenvolvendo competências, ou criando fontes de rendimento extra) são estratégias cruciais e ao alcance de muitos.
Mas a ideia de que o FIRE é para qualquer salário, que durante 20 anos a ganhar o salário mínimo se se for muito poupado “até se consegue lá chegar” na minha opinião não é realista. A não ser que de alguma forma se tenha conseguido ter casa paga e se morar muito longe dos centros, não é possível. Temos de ter em mente que ser FIRE é uma coisa que quase ninguém é, e por isso temos de estar dispostos a fazer o que ninguém faz.
E isso é: estar sempre a investir no nosso conhecimento e à procura de um trabalho que pague mais, e para além disso não se deixar levar pelo consumismo mesmo quando se é aumentado, continuar a gastar o mesmo que sempre gastou. Isto é fácil de dizer, mas muito difícil de executar. Ora se eu trabalho mais/tenho mais responsabilidade e ganho mais e os meus colegas neste trabalho têm todos o Mercedes xyz, porque é que eu ei de andar no meu Peugeot 307 com 8 anos?
Emigração como Acelerador
Obviamente que ir para o estrangeiro acelera muito o processo e às vezes em 5 anos ficas FIRE. Quem é que não quer isso? A questão é que em princípio já temos a sensação de estar a perder um pouco, ou pelo menos é o que nos dizem, quando ganhamos para ter um certo estilo de vida, mas não temos tudo o que os outros à nossa volta têm, e depois ainda por cima estamos longe da família e amigos. A emigração não é para qualquer um, mas têm de facto grandes vantagens.
Mas como já dito anteriormente, se procurarmos sempre empregos que paguem mais, mesmo em Portugal penso que o FIRE é possível para uma grande parte das pessoas. Acho que muita gente se deixa levar pelas estatísticas que lemos na net sobre os nossos ordenados serem muito baixos e acham automaticamente que não vale a pena tentar. Mas na verdade a maior parte das pessoas com quem falo que acham que FIRE não é possível, ganham por volta dos 1000€ mensais. Com um parceiro que ganhe o mesmo, são 2000€. Mesmo que paguem 800€ para a casa sobram 1200€ para as despesas e para poupar. O que muita gente também se esquece é do 13º e 14º mês, prendas e dinheiro que se recebe especialmente quando somos mais novos e do IRS. Estes valores todos juntos normalmente ainda perfazem um valor considerável. E também há a questão de para os que já trabalham há muitos anos, ainda receberem da segurança social quando chegam à reforma.
Evolução da Mentalidade na Jornada FIRE
E por fim há um ponto bastante importante, mas quase impossível de explicar por palavras. Tem a ver com o fato da maior parte das pessoas quando começa a jornada FIRE só pensa em deixar de trabalhar, mas quando começa a ver que é possível e já tem um valor considerável, percebe que não depende do trabalho para sobreviver e começa a achar que se calhar um part-time “até se fazia”. Ou seja, se calhar chega só a metade do valor FIRE e já começa a viver uma vida com muito menos preocupações e a trabalhar menos. Claro que isto para quem ainda não começou parece uma falácia, então se a palavra “reforma” está literalmente no “FIRE”, porque é que me vens falar em continuar a trabalhar? Isso já não é FIRE.. E têm toda a razão, a questão aqui prende-se mais com este ser o percurso habitual de quem está na jornada FIRE e como tal tem de ser mencionado. Para quem não quer ouvir isto, claro que tem toda a legitimidade de fazer as suas contas e planear o FIRE para não ter de trabalhar nem mais um dia o resto da vida. A regra dos 4% contempla exatamente isso.
Conclusão: Começa Agora!
De uma forma geral, a vasta informação e os recursos partilhados neste grupo, adaptados à realidade portuguesa (discussões sobre ETFs, impostos, corretoras, poupança), demonstram que existe um caminho bem trilhado para quem quer perseguir o FIRE em Portugal, independentemente do seu nível salarial atual.
Em conclusão, enquanto os salários em Portugal exigem uma abordagem talvez mais focada na poupança e na progressão de carreira, o FIRE é absolutamente realista. É importante, no entanto, compreender os seus princípios fundamentais e evitar a ideia errada de que se trata de uma via para um padrão de vida inflacionado na reforma. O verdadeiro poder do FIRE reside na liberdade e nas escolhas que ele nos proporciona, ao libertar-nos da dependência de um emprego tradicional para cobrir as nossas despesas. O passo mais difícil para muitas pessoas é mesmo começar a investir.
